segunda-feira, 22 de junho de 2009

Noctívago, pero no mucho


É fato: sou um adepto da noite. Desde a mais tenra idade, tenho problemas para dormir. Das primeiras lembranças que tenho da infância, a mais antiga talvez seja a de minha mãe deitada comigo e cantando para eu dormir: Para o neném dormir, mamãe canta uma canção/ Para o neném dormir perto do meu coração... Quanta saudade trago no peito...! Mas creio se tratar de uma saudade solitária, é bem possível que minha mãe não tenha boas recordações dessa época. Ocorre que quando ela começava a cantar eu a acompanhava e o que era para ser uma canção de ninar se transformava numa cantoria.


Na pré-adolescência, com rotina quase militar a ser seguida, sentia-me extremamente perturbado e não compreendia o porquê da vontade quase incontrolável de varar a noite acordado. À luz - ou à treva - da religião, atribui minha angústia a alguma espécie de espírito malígno. Somente a rebeldia adolescente foi capaz de me levar a transgredir uma lei pétrea de minha casa: a noite é para dormir. Inúmeras madrugadas passei lendo, assistindo televisão, navegando na internet ou simplesmente rolando na cama, pensando na morte da bezerra. Fazia-o sem culpa, sem medo de ser feliz, e nunca me senti prejudicado por isso. Minhas notas na escola eram exemplares e eu dava conta de assimilar bem os conteúdos que estudava. Não era sonolento, tampouco desanimado.

Os vinte anos chegaram e com eles as responsabilidades de adulto: consegui um emprego. Trabalhava numa fábrica de espumas automotivas, de seis da manhã às três da tarde, prestava monitoria na universidade, de quatro às sete, e estudava de sete às dez e meia da noite. Foram dias difíceis, mas para espanto dos que atribuiam minha preferência pela noite à falta do quê fazer, eu chegava em casa morto de cansaço e não conseguia dormir cedo. Alguém pode pensar que se tratava de insônia, mas não, eu sinto sono. Tenho um relógio biológico que só me diz que é hora de dormir depois das quatro da manhã. Mesmo com uma rotina de derrubar qualquer cristão (o trabalho na indústria era muito pesado), inúmeras vezes eu passei a noite em claro, rolando na cama, e fui para a lida sem ter pregado os olhos. A solução que encontrei foi pedir aos meus superiores que me transferissem para o turno da noite.

O tempo das vacas magras, graças a Deus, passou. Hoje posso me dedicar exclusivamente aos estudos e vou me virando com a graninha dos estágios, mas o hábito de trabalhar à noite persiste, como agora. É algo quase que instintivo, a noite começa e com ela minha mente fica desperta, meus sentidos se tornam mais aguçados e as idéias começam a ferver. É à noite que eu me encontro, ou me perco... Acontece, porém, que recentemente a culpa por dormir tarde voltou a me rondar. Na minha casa seguimos a linha politicamente corretos. Nos preocupamos com o meio ambiente, com a política, acompanhamos o que acontece à nossa volta e cuidamos de nossa alimentação e de nossos hábitos. Para nos mantermos bem informados, estamos sempre lendo publicações que abordam temas relacionados à qualidade de vida. Uma das revistas que assinamos é "Saúde!", da Editora Abril. Nela sempre há reportagens interessantes sobre nutrição, estudos científicos, et cetera. No mês passado, a matéria de capa foi sobre nove atitudades que ajudam a evitar o câncer. Quando a revista chegou, fui com toda sede ler a matéria e qual não foi minha decepção? A primeira atitude: durma cedo. A matéria diz que o não dormir nos expõe ao câncer e que, em caso deste já estar se desenvolvendo, as noites em claro só fazem acelar a evolução da doença. A reportagem diz ainda que é também à noite, quando nos entregamos ao travesseiro, que a glândula pineal, no cérebro, fabrica a melatonina - hormônio que regula o ritmo biológico e tem efeito antioxidante. Para o desespero dos noctívagos, não basta só dormir à noite, segundo a revista, o pico na produção de melatonina ocorre por volta de uma da manhã e é necessário que se esteja dormindo há pelo menos uma ou duas horas.

Foi um golpe terrível para mim, só não me alarmei mais por que os estudos científicos ainda têm muito que prosseguir. Tenho tentado tomar as tais atitudes de que a revista fala, mas já esbarro logo na primeira, como estou fazendo agora - precisamente uma hora da manhã - ao escrever este texto. Minha cota de melatonina de hoje já foi para o beleléu... tentarei compensar dormindo mais cedo amanhã, digo, hoje. Por isso : sou noctívago, pero no mucho.

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